Na complexidade das redes sociais, perfis digitais se tornam vitrines de uma vida idealizada. A cultura da positividade e do sucesso material se entrelaçam, gerando uma pressão constante sobre os usuários. Entre poses ensaiadas e parcerias pagas, surge um panorama inquietante sobre a saúde mental na era digital, onde a busca pela felicidade é muitas vezes ditada por algoritmos e padrões superficiais.
Talvez seja uma das atividades mais recorrentes da humanidade nestes anos 20 do século XXI: rolar o feed do Instagram ou TikTok, casualmente, em busca de entretenimento, para matar o tempo ou para bisbilhotar a vida alheia.
Acredito que já seja ultrapassado falar sobre a dissociação entre mundo real e mundo digital: os perfis sociais nas mídias digitais são uma parte de nós jogada nas redes ou, ao menos, a parte que queremos que os outros conheçam. Representam, com ressalvas, a parcela do real no digital a ser “vendida” aos usuários.
Assim como qualquer domínio físico e de acesso público, o ambiente digital é igualmente concebido, instaurado e perpetuado por agentes humanos. Importa salientar a distinção entre "mundo digital" e "mundo virtual", pois o termo "virtual", conforme definido pelo dicionário Michaelis, significa “sem efeito real”. No entanto, é patente para nós, os usuários, que as interações na rede têm, de fato, repercussões tangíveis.
O que é de fato curioso notar é, justamente, o fato de tais redes serem cada vez menos “sociais” e cada vez mais “comerciais”. Entre publis (publicidades pagas), parcerias pagas e influencers, as timelines são inundadas de corpos em poses ou danças em busca de seguidores, likes, mas, principalmente, de consumidores, ávidos em devorar o conteúdo ali exposto.
Seres humanos em prateleiras
Em seu livro “Vidas para consumo”, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman dissecou as relações humanas estabelecidas na sociedade contemporânea. Num grande mercado de gente, todos nós somos mercadorias a serem analisadas, compradas e consumidas pelos milhares de usuários via conectividade.
Bauman fornece diversos exemplos para explicar o cenário, que ainda é o do início do Século XXI. Menciono dois: primeiro, os programas de imigração de países europeus, que ranqueavam os proponentes estrangeiros que queriam entrar no território, tendo como base as habilidades que estes poderiam oferecer; o segundo, um compartilhamento de informações, por meios digitais, de consumidores, com o intuito de organizá-los em 3 níveis de importância, a quem seriam dedicados tratamentos e mercadorias diferentes.
Em ambos os casos, seres humanos são tratados como produtos. Mesmo quando são clientes, humanos são ranqueados e, numa hierarquia de consumo, “usados” pelo sistema.
E o que determina que uma mercadoria é mais consumível do que outra? O parâmetro é bem subjetivo, mas tornar-se atrativo para alguém (e são vários alguéns) requer alguns atributos vistos como “bons” pela moralidade da sociedade. Um corpo bonito nos parâmetros culturais vigentes; uma vida boa e desejável pelos usuários; felicidade e sucesso material.
Arrisco dizer que justamente esses dois últimos itens (felicidade e sucesso material) podem resumir todos os itens anteriores e quaisquer outros que possam ser citados a mais. A tristeza não é vendável, a menos que esta sirva como motivo para a alegria alheia em destilar seu ódio e cancelar alguém; por outro lado, a felicidade e sua derivada positividade são desejadas ansiosamente.
Essa positividade, inclusive, tornou-se a base para o sucesso material num contexto em que há quem acredite que o Universo devolve a você aquilo que você manda pra ele. Logo, a positividade seria a mola mestra para o enriquecimento e o sucesso numa sociedade repleta de pessoas tristes e medíocres.
Se você já teve contato com livros contemporâneos sobre administração ou desenvolvimento profissional, assistiu a vídeos motivacionais ou recebeu conselhos de um "coach", é provável que tenha notado o quão exaustiva pode ser a cultura da "positividade", da "meritocracia" e do "faça você mesmo".
Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano e autor do livro “A sociedade do cansaço”, afirma que uma das principais causas para a piora generalizada na saúde mental das pessoas é o excesso de positividade. Numa ditadura da felicidade, os reclusos e quietos são colocados como preguiçosos, enquanto os inquietos e positivos são produtivos e, por essa lógica, bem sucedidos.
As mídias sociais, então, são o palco para essa positividade tóxica: precisamos mostrar como somos produtivos, felizes, bem sucedidos e positivos, viciados em dopamina (tanto quem posta, quanto quem consome). Uma dopamina que se intensifica a cada endosso fornecido em forma de corações.
A tecnologia é aquilo que fazemos dela
É impossível não conectar isso a um episódio já meio antigo da série Black Mirror, da década passada, que preconizava uma sociedade baseada na quantidade de estrelas que o indivíduo recebe. Em “Nosedive”, acompanhamos a personagem Lacie em sua busca por crescimento social. Para tal, ela precisa receber a maior quantidade de boas avaliações (5 estrelas) numa espécie de rede social que, para além de um espaço de interações sociais, garantia ou impedia o acesso de pessoas em determinados espaços tendo como base seu ranking positivo ou negativo.
Os desdobramentos, ao longo do episódio, misturam real e fantástico, trágico e cômico. A cena de encerramento deste episódio (que não detalharei, porque
acredito que você deva assistir) explode na cara do espectador toda a verdade que uma pessoa esconde das redes, por não ser vendável.
Contudo, é preciso deixar claro que as mídias sociais são aquilo que a humanidade faz delas.
Pierre Lévy figura entre os destacados pesquisadores da interconectividade e suas implicações na estrutura sociocultural. Sua obra seminal, "Cibercultura", representa um ponto de partida imprescindível para aqueles que almejam abarcar as complexas dinâmicas sociais no contexto digital.
Um dos aspectos mais notáveis deste trabalho reside na análise do impacto das tecnologias sobre a sociedade. Lévy habilmente aborda essa temática sob a forma de uma indagação: de fato, haveria um impacto?
Inicialmente, é crucial compreender que nenhuma tecnologia surge de forma isolada; ela é concebida dentro do contexto temporal, histórico, cultural e social. Desta maneira, é resultado de uma demanda intrínseca às vicissitudes do cotidiano humano.
À semelhança de um presente providencial, a invenção da roda não foi um legado de seres extraterrestres, solidários aos esforços dos humanos que enfrentavam dificuldades no transporte de objetos. Ao contrário, emergiu da necessidade premente de melhor locomoção, impelindo a humanidade a conceber uma solução, um mecanismo capaz de suprir tal deficiência.
Uma vez introduzida, a roda desencadeou uma verdadeira revolução. A combinação de maior velocidade e menor esforço físico conferiu uma nova dinâmica à sociedade, propiciando sua transformação e revolução.
Paralelamente a essa revolução, novas demandas emergiram, incitando novamente a humanidade a desenvolver tecnologias que, por sua vez, provocariam transformações sociais de magnitude. Essa narrativa não pressupõe uma visão cíclica da história, mas ilustra a relação dialética entre sociedade e tecnologia: a sociedade engendra tecnologia, esta, por sua vez, transforma a humanidade e suscita novos desafios.
A lógica do capital nas redes
Na sociedade do cansaço de Han, só os positivos, proativos e produtivos é que são desejados pelo sistema meritocrático do alto desempenho. Mas atinge um novo nível, baseado na exploração que o próprio indivíduo faz de si.
Segundo Byung-Chul Han, após atingir um determinado patamar de produção, a autoexploração se torna economicamente mais eficiente do que a exploração
externa, uma vez que está intrinsecamente associada a uma ilusória sensação de liberdade.
Nos perfis em redes sociais, usuários mimetizam uma persona e um estilo de vida que, definidos os nichos, segmentos e estratos sociais, tornam-se produtos a serem consumidos, baseados em um excesso de positividade que torna-se toxicidade, essencialmente por evidenciar a distância entre o eu-real e o eu-ideal nos usuários.
Em meio às prateleiras digitais onde os seres humanos se tornam produtos, é essencial refletir sobre a natureza e os efeitos dessa cultura da positividade tóxica. Como observadores atentos desse panorama digital, somos confrontados com a realidade de que nossa busca incessante pela felicidade muitas vezes é moldada por algoritmos e padrões superficiais.
Como transformar essas plataformas digitais de vitrines idealizadas de positividade tóxica em espaços de conexão humana verdadeira?
A resposta é vaga, a conclusão é complexa. Sigamos refletindo.
Texto escrito por Pablo Michel Magalhães
Escritor, historiador e filósofo baiano. Observador atento de política, cultura e signos midiáticos. Podcaster no Historiante, onde tece críticas e constrói processos educativos. Professor da educação pública no Estado de Alagoas. Autor do livro "Olhares da cidade: cotidiano urbano e as navegações no Velho Chico" (2021).
Revisão por Eliane Gomes
Edição por Eliézer Fernandes
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