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Análise nacionais e internacionais em um clique

Há futuro nas democracias?

Foto do escritor: Jeane QueirozJeane Queiroz
Charge retratando uma família. Um dos adultos segura a Constituição e diz: "Todo Brasileiro tem direito à moradia..." enquanto outro responde "Agora lê aquele pedaço bonito que fala de comida, saúde..." segurando um bebê.
Charge: Miguel Paiva | Memorial da Democracia

As democracias são frequentemente associadas a valores como liberdade, igualdade e participação pública, mas, na prática, enfrentam desafios diante da ascensão da extrema direita.


Em diversas partes do mundo, suas estruturas têm sido testadas pelo processo de autocratização, pelo enfraquecimento das instituições democráticas, por políticas antipopulares, ataques à imprensa, pela crescente polarização política e pelo cerceamento de direitos civis, como observado nas recentes tentativas de reversão das leis que ampliaram os direitos de mulheres e pessoas LGBTQIAP+, tanto na Argentina quanto nos Estados Unidos.


De acordo com o estudo de 2024 do Instituto Variedades da Democracia (V-Dem), há um declínio global na qualidade democrática, especialmente em países onde governos de direita ascenderam com discursos autoritários. Ao limitar a oposição por meio de estratégias populistas e polarizadoras, que pintam a democracia como “ineficiente ou ameaçada” e se colocam como “salvadores da nação”, é uma tática amplamente ‘manjada’.


América do Sul – Brasil


O governo de Jair Bolsonaro (2018-2022) negligenciou a crise sanitária da Covid-19, disseminando informações falsas sobre vacinas e agravando a crise, o que resultou em milhares de mortes evitáveis. Sua gestão também foi marcada por declarações que fomentaram a intolerância, especialmente contra grupos minoritários.


Historicamente, movimentos fascistas tendem a ressurgir em períodos de crise econômica e instabilidade política, quando narrativas excludentes são usadas para culpar minorias pelas dificuldades sociais. No Brasil, a relativização da ditadura, a disseminação de teorias conspiratórias, ataques às instituições democráticas e o enfraquecimento de políticas de direitos humanos, aliados ao uso de lemas historicamente associados ao integralismo, como "Deus, Pátria e Família", têm sido usados para promover um discurso ultraconservador e nacionalista, criando um terreno fértil para esses grupos.


De acordo com as pesquisas da antropóloga Adriana Dias (1970-2023), células de grupos neonazistas cresceram 270,6% no Brasil entre janeiro de 2019 e maio de 2021, se espalhando por todas as regiões. Pesquisadores do Observatório da Extrema Direita destacam que esse fenômeno não se limita ao Bolsonarismo, mas reflete uma radicalização impulsionada por discursos de ódio, conservadorismo, desinformação e o uso estratégico das redes sociais para recrutar e mobilizar seguidores.


Durante o governo de Bolsonaro, uma série de protestos em massa surgiram em resposta às políticas impopulares e movimentos contra a Constituição, que afetaram diretamente a vida de milhões de brasileiros. Um dos principais protestos, além dos referentes a escassez de alimentos com a alta dos combustíveis e o desemprego, foi o corte no orçamento da educação, especialmente os cortes nas universidades e institutos federais, o que gerou uma mobilização significativa entre estudantes, professores e acadêmicos contra os esforços da direita para desmantelar o ensino público no Brasil.


Protesto contra os cortes na Educação. Em primeiro plano uma faixa dizendo: "Educação é resistência". Ao fundo bandeiras de movimentos sociais e sindicais.
Crédito: Paulo Pinto/Fotos Publicas | Fonte: Contee

Europa – Grécia


Em 28 de fevereiro de 2023, um trágico acidente ferroviário ceifou a vida de 57 pessoas após um trem intermunicipal com passageiros a bordo colidir com uma locomotiva de carga no vale de Tempe, na região de Tessália. Em 2025, dois anos após o ocorrido, as manifestações na Grécia escancaram a indignação popular diante da negligência do governo em relação às condições de vida da população.


O aumento do custo de vida e das condições de trabalho precárias, agravadas por políticas que favorecem interesses privados, gerou revolta e levou milhares de cidadãos às ruas, exigindo transparência e ações concretas para garantir a segurança pública. As manifestações de fevereiro resultaram em repressão policial, com o uso de gás lacrimogêneo e a detenção de cerca de 90 pessoas e dezenas de feridos.


Em maio de 2023, o partido de direita Nova Democracia (ND), sob a liderança do primeiro-ministro Kyriakos Mitsotakis, venceu as eleições, renovando o mandato por mais quatro anos. Durante sua campanha, Mitsotakis prometeu grandes reformas, incluindo aumentos salariais e enfrentamento das dificuldades econômicas, mas suas promessas continuam sem concretização, gerando crescentes insatisfações. O governo também foi marcado por acusações de desvirtuamento de investigações, como o escândalo de escutas telefônicas em Atenas. 


Na época do acidente, inclusive, poucos meses após assumir o cargo, Mitsotakis afirmou que o acidente foi “um trágico erro humano”, mas até agora, as investigações seguem sem conclusão ou condenação de suspeitos pelas mortes.


Manifestantes de um lado de uma barreira. Do outro uma explosão e chamas.
Crédito: Angelos Tzortzinis/AFP | Fonte: Correio Braziliense

Ásia – Coreia do Sul


Em 3 de dezembro de 2024, o presidente sul-coreano Yoon Suk Yeol, membro do partido conservador, anunciou a implementação de uma Lei Marcial em resposta a crescentes tensões sociais e manifestações contra o governo, incluindo conflitos trabalhistas e exigências por reformas. A medida restringe severamente as liberdades civis e políticas, permitindo aos militares o controle da movimentação das pessoas e a imposição de toques de recolher.  A decisão, comunicada por um discurso sem aviso prévio e transmitida ao vivo no canal de notícias YTN.


A última vez que a Lei Marcial foi aplicada na Coreia do Sul foi em 1980, durante a ditadura militar, quando o governo utilizou a força para reprimir protestos pró-democracia, resultando em centenas de mortes –  como foi no levante de Gwangju, que se tornou um símbolo importante na luta pela democracia na Coreia do Sul e que é lembrado como um dos momentos mais trágicos da história do país. Já em 2024, a tentativa de golpe de Estado foi rapidamente rejeitada pelo Parlamento, que iniciou um processo de impeachment de Yoon Suk Yeol, formalizando sua destituição 11 dias após o ato antidemocrático.


A mobilização da população também foi importante frente à Assembleia Nacional, na capital Seul, mesmo com as temperaturas próximas a zero graus. O destaque se deu a juventude fã de k-pop, que frequentemente combina elementos da cultura pop com ativismo político, usando músicas de k-pop e a figura dos lightsticks como forma de resistência política.


Jovens manifestantes sul-coreanos segurando cartazes e lighsticks durante protesto.
Crédito: Jung Yeon-je/ AFP/ Getty Images | Fonte CNN

Os jovens sul-coreanos, por meio de redes sociais como Twitter, Instagram e TikTok, convocavam outros fãs para protestar e fazer pressão sobre o governo. Enquanto “Whiplash”, música do grupo aespa, teve a letra alterada para dar voz às palavras de ordem “renuncie, renuncie, renuncie, Yoon Suk-yeol”, os lightsticks, bastões de luz tradicionalmente usados durante os shows de k-pop, eram balançados pelos manifestantes seguindo os gritos de ordem, iluminando as ruas e ganhando um novo simbolismo de resistência política.


A resposta:


Se olharmos para a história do mundo, a democracia já passou por crises profundas e tentou se reinventar de todas as formas, mas nunca sem o esforço coletivo. Todavia, o crescimento da extrema direita, principalmente com a alavanca da desinformação/fake news e uso de estratégias de disseminação por meio de redes sociais, provoca a capacidade dos regimes democráticos de se manterem estáveis e inclusivos.


Lenin, em sua obra O Estado e a Revolução (1917), argumenta que a democracia no capitalismo não é genuinamente democrática. Ela não é mais que uma forma política que, embora forneça certos direitos e liberdades, serve, na essência, aos interesses da classe dominante.


Capa do livro "O Estado e a Revolução" de Vladímir Ilitch Lenin. Capa em amarelo e preto. A capa mostra um retrato simplificado do autor.
“O Estado é o produto e a manifestação do caráter inconciliável das contradições de classe. O Estado surge precisamente onde, quando e na medida em que as contradições de classe objetivamente não podem ser conciliadas.”

A pergunta para o futuro das democracias, portanto, se torna ainda mais relevante. Uma vez que o Estado não é um instrumento neutro, mas sim uma manifestação das contradições de classe, as democracias ao redor do mundo, imersas no auge do capitalismo tardio, perpetuam o mecanismo de manutenção do poder da burguesia para a dominação das massas populares. Seu modelo de sistema de governo não só aparenta está cada vez mais sucumbindo a reprodução de novos formatos de desigualdade escancarada a classe trabalhadora.


As democracias liberais não são capazes de se aproximarem da ideia de igualdade, mas se tornaram campos de batalha onde somente as elites ganham. Isso significa que os interesses poderosos, as corporações e o mercado financeiro prevalecem sobre as necessidades reais do povo. E é somado as ações de governos de direita, sob o disfarce de "restaurar a ordem", crescem.


À medida que a extrema direita ganha espaço, torna-se cada vez mais evidente que o modelo democrático atual está longe de ser ideal. É um ataque quase combinado: começa com a polarização, as fakes news e a criminalização de movimentos populares, até chegar ao convencimento de uma população marginalizada que a democracia existe para todos, quando na verdade serve apenas para consolidar o poder nas mãos de uma minoria.


O futuro não só pode como deve ser diferente, pois vimos que a juventude desempenha um papel fundamental nesse processo de agitação política. Sendo o motor de uma revolução que visa romper com a passividade das massas e despertar nelas a necessidade de uma ação coletiva, ao se engajar desde cedo nas lutas sociais e políticas, estes podem mudar profundamente o que se espera para os próximos anos, alimentando um movimento que vai além da resistência, mas que busca a transformação radical das condições materiais de vida.



Texto escrito por Jeane Queiroz

É jornalista e pós-graduanda em Assessoria de Imprensa e Gestão da Comunicação. Orgulhosa "fã de carteirinha" de K-pop, fundou o coletivo Liga Comunarmy, que une fãs do grupo sul-coreano BTS focados em disseminar a perspectiva da luta de classes através do incentivo e análises das músicas da banda.




Revisão por Eliane Gomes

Edição por João Guilherme V.G.


 

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