Ao longo de toda a história da humanidade é possível identificar momentos de conflitos, ora por questões culturais, ora por valores, ora entre classe dominante e classe dominada. Exemplos disso, temos eventos como a Revolução Protestante, a Revolução Francesa e a Revolução Americana.
Esses e diversos outros eventos contribuíram para a evolução da humanidade, trouxeram divergências de interesses e propuseram à sociedade novos modelos, o que causou atritos até que se estabelecesse uma nova realidade e a boa convivência e a normalidade voltasse.
Desses conflitos surgiram diversas formas diferentes de organização, por exemplo as organizações sindicais, os movimentos pelos direitos das mulheres, o movimento negro e mais recentemente, o movimento LGBTQIA+. Esses movimentos buscam representar uma população, ou parte dela, que está à margem da sociedade. Ou seja, assume o papel representativo de um determinado segmento, que muitas vezes possui demandas que não estão sendo atendidas pelo Estado e que, de algum forma, precisa se organizar e lutar por representatividade.
Esses movimentos sempre existiram, porém, de tempos em tempos, suas pautas são novamente atualizadas, de acordo com as demandas sociais daquele período histórico. Após a segunda guerra Mundial, dois fatores começaram a contribuir para que um novo momento de conflito entre diferentes ideias pudesse acontecer:
A sensação de liberdade, provida pelo então chamado modelo American Way of Life, que foi um cartão postal do capitalismo moderno para o mundo, possibilitando diferentes padrões de vida e sociedade;
A partir da promoção da liberdade americana, refletida em todo o ocidente, permitiu-se que movimentos sociais pudessem melhor se organizar, fortalecer e lutar por seus direitos.
A soma desses dois fatores culminaram em considerável progresso no aumento dos direitos de populações minoritárias e vulneráveis, ascensão cultural, maior acesso à informação, fortalecimento da ciência e, principalmente a possibilidade de questionamento no modelo social imposto até então. Essa evolução social propôs debates entre visões diferentes e a tentativa de alinhamento social. Porém esse movimento também causou efeito reverso, fazendo com que conservadores se sentissem ameaçados e, a partir de então, passassem a se reunir em busca de combater estas novas tendências.
É neste cenário posto que se torna propício o conflito entre ideias, interesses e modelo de vida e é o que tem acontecido desde então.
Abaixo o debate, avante a batalha!
Até então, o termo Guerra cultural ainda não era conhecido e não havia sido usado. Foi no final dos anos de 1980 e início de 1990 que esse termo surgiu.
O ano era 1992 e estava ocorrendo a disputas nas primárias do Partido Republicano Americano. Foi durante a convenção do partido, em um discurso, que o termo "Guerra cultural", ganhou notoriedade e escancarou o incômodo dos conservadores sobre os valores, costumes e estilo de vida em ascensão.
"Há uma guerra religiosa acontecendo neste país! É uma guerra cultural, tão crítica para nação que seremos como foi na Guerra Fria, pois é uma guerra pela alma da América!"
O responsável pelo discurso foi o conservador Patrick Buchanan, então concorrente nas primárias do Partido Republicano, na disputa pela vaga de candidato a Casa Branca. Buchanan perdeu as primárias para George Bush, mas contabilizou cerca de meio milhão de votos, o que sinalizou que a insatisfação de Buchanan com o progressismo não era algo insignificante.
Da convenção do Partido Republicano até hoje, já se passaram 30 anos. Desde então, a denominada Guerra cultural tomou todos os EUA, ganhou o mundo e também fez trincheiras no Brasil. O progressismo alcançado e fortalecido ao longo dos anos tem cada vez mais regredido e enfraquecido, devido aos constantes ataques.
Nos EUA, desde então, movimentos conservadores têm cada vez mais se fortalecido, aumentando a frequência de ataques e protestos. A insatisfação com o progressismo fez com que fosse trazido ao poder a figura de Donald Trump em 2016, plantando a semente do movimento que viria a ser chamado posteriormente de Trumpista, que, mesmo perdendo as eleições de 2020, é resistente ao governo progressista de Joe Biden e tem se fortalecido e se disseminado através de células por todo o país.
Na Europa, o enfraquecimento da União Europeia, o BREXIT, o aumento de células neonazistas na Alemanha e, mais recentemente, a vitória de Giorgia Meloni, candidata da extrema direita italiana, fatos que representam como a Guerra cultural tem se fortalecido no velho continente.
No Brasil, após o governo progressista do Partido dos Trabalhadores ter tirado o país do mapa da fome e possibilitado a ascensão social de milhares de famílias, a direita e a extrema direita se apoderaram de discursos conservadores, para que fosse instaurada uma Guerra Cultural no país, a partir de discursos falsos, que muitas vezes tem como objetivo proteger os privilégios das classes mais abastadas.
Além disso, em um momento de insatisfação da população com a corrupção, a extrema direita usou este incômodo social como combustível para incitar a população e promover o golpe de 2016, contra a então presidenta Dilma Rousseff.
A comunicação e a desinformação como armas
Para se ganhar uma guerra é necessário arma, e na instaurada Guerra cultural isso não é diferente. As principais armas utilizadas nestes conflitos têm sido a comunicação e a desinformação.
Nos EUA o uso dessas potentes armas têm acontecido desde a eleição de Barack Obama, em 2008. Acusado de não ser americano, o ex-presidente foi apontado como uma fraude durante seus dois mandatos, inclusive, por seu sucessor, Donald Trump. Esse aliás, utilizou a desinformação não somente contra o ex-presidente Obama, como também contra sua rival, Hillary Clinton, na eleição de 2015.
Donald Trump utiliza da comunicação e desinformação para invocar os americanos à uma suposta superioridade imperial no mundo. Ele evoca em seus seguidores a luta contra tudo que possa ameaçar a supremacia americana. Além disso, clama por um ideal conservador inexistente, algo que também é evocado pelo "Trump tupiniquim", Jair Bolsonaro.
Bolsonaro conclama a seus fiéis seguidores a busca deste ideal conservador através da desinformação, inventando e incitando seu exército na luta contra o comunismo, a ideologia de gênero (sic), o feminismo, promovendo uma religiosidade barata, usando da fé e espiritualidade, algo muito presente na população brasileira. Foi com esse discurso conservador na voz de Jair Bolsonaro, que a extrema direita se viu representada no Brasil e, seguindo rigorosamente a cartilha dada por Donald Trump, a extrema direita ascendeu ao governo brasileiro e tem protagonizado uma escalada de ataques e violência, para permanência no governo.
Seja nos EUA, Europa ou Brasil, a comunicação e os meios de comunicação tem sido utilizados incansavelmente como poderosas armas para disseminar a desinformação, agora também chamada de fake news. O seu alcance é avassalador e causa principalmente o ódio, provocando a polarização.
Em seu discurso, Buchanan não quis utilizar de maneira figurativa. A sua sinalização foi de que uma guerra estava se iniciando. Em uma guerra há dois lados, o certo e o errado, o bom e o mau.
O retrocesso e o ódio
Com o conceito de Guerra Cultural introduzido, a luta tem sido desigual. A principal arma tem sido a comunicação e o principal combustível tem sido o ódio. A escalada dessa guerra tem cada vez mais trazido prejuízos e ameaças ao futuro.
Enquanto esquerda e direita, adversários políticos, tentam dialogar, deixando de lado suas diferenças ideológicas em busca do fortalecimento da democracia e o bem comum, o fanatismo dos movimentos bolsonarista no Brasil e o trumpismo nos EUA, descola da realidade parte da população que, encantados por seus líderes autoritários, não tem a intenção de usar o diálogo, apenas promover o ódio contra o diferente e a necessidade de eliminar o inimigo, minando cada vez mais a base da democracia.
O progresso alcançado nas últimas décadas tem sido cada vez mais ameaçado e, em alguns casos perdido, como o caso do direito ao aborto nos EUA, revogado em Junho de 2022. No Brasil, temos visto a escalada do racismo e o aumento da violência. Movimentos como o feminismo, movimento negro e LGBT, que buscam direito, inclusão e dignidade, tem recebido cada vez mais ataques.
Em contrapartida, temos visto o aumento de células fascistas, racistas e homofóbicas, respaldadas pelos discursos dos seus líderes e pouco se vê medidas contra, na maioria das vezes, apenas notas de repúdio.
Como em toda guerra, não se tem previsão de término e não é possível mensurar as suas perdas. Embora Donald Trump tenha perdido a eleição americana, o trumpismo ainda vive. No Brasil, Bolsonaro é o representante de cerca de 45% da população. O fanatismo alcançado plantou sementes e tem criado discípulos, ameaçando a todos, progressistas e inclusive conservadores, criando dúvidas se alguém irá sobreviver para ver o fim deste conflito.
Texto escrito por Felipe Bonsanto
Formado em Administração de empresas, pós-graduação em marketing e apaixonado por Los Hermanos. É militante pelos direitos LGBTQIAP+, trabalha com educação há oito anos, atua como co-host no podcast O Historiante e é colunista do Zero Águia.
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