Quem não gosta de um filme, não é mesmo? Seja nas cada vez mais inacessíveis salas de cinema ou no conforto de casa, a sétima arte é entretenimento, proporciona debates políticos e tem influência na construção de visão de mundo. Entretanto, existe um período em que as películas cinematográficas começaram a ter uma função de “arma de guerra”.
O historiador Eric Hobsbawm considerava a Segunda Guerra Mundial uma guerra total, onde todos os setores da sociedade empregavam esforços no conflito, seja na produção de armas, seja na manutenção do ânimo da tropa. A luta contra os países do Eixo exigiu mobilização ideológica e econômica, o que incluiu o cinema.
Nas décadas de 1930 e 1940, o cinema era amplamente difundido como forma de entretenimento, e os Estados Unidos dominavam as produções após o enfraquecimento do cinema francês, que sofreu com as consequências da Primeira Guerra Mundial. Com a chegada da Segunda Guerra Mundial, o cinema estadunidense mudou o teor de suas histórias para fortalecer o ideário de resistência ao totalitarismo, representado pelos nazistas.
Segundo Wagner Pinheiro Pereira, o cinema estadunidense passou a priorizar histórias que fortaleciam o sentimento de solidariedade aos aliados e ódio aos inimigos. Isso envolveu alterações na linha criativa, como nos roteiros, na escolha de atores e atrizes, nos cenários e na ambientação.
Do lado dos alemães, encontrar uma linha narrativa que fortalecesse o sentimento de coesão também era prioridade das produções. Após o fim da Primeira Guerra Mundial, o governo criticava a forma como os filmes retratavam os germânicos, apresentados como vilões caricatos, com sotaque carregado, desvalorizando o exército alemão.
Durante a Segunda Guerra Mundial, os alemães buscavam reverter a imagem negativa deixada pela Primeira Guerra, enquanto os Estados Unidos produziam filmes para fortalecer a coesão contra os nazistas. No entanto, engana-se quem acredita que o período entre guerras foi marcado por um cinema estadunidense de “resistência” aos avanços dos nazistas.
Ben Urwand, em seu livro “O pacto entre Hollywood e o nazismo: como o cinema americano colaborou com a Alemanha de Hitler”, busca desmistificar a memória da chamada “resistência” dos filmes estadunidense contra o nazismo, que ficou conhecida como “Era de Ouro” do cinema. A ideia surgiu quando Budd Schulberg, roteirista e romancista, afirmou que Louis B. Mayer, chefe da MGM na década de 1930, projetava filmes para que o cônsul da Alemanha indicasse o que deveria ser cortado das obras cinematográficas.
Os alemães possuíam contato direto e constante com produtores e diretores estadunidenses, monitorando os filmes de perto. Na década de 1930, os nazistas examinaram mais de 400 filmes, categorizando-os como “bons”, “ruins” e “desligados”. Os bons, obviamente, eram aqueles positivos aos ideais do nazismo, como o “O Despertar de uma Nação”, elogiado pelo próprio Ministro da Propaganda nazista Joseph Goebbels. Ao longo dos anos, os estúdios de Hollywood venderam muitos filmes desse tipo à Alemanha, pois encontraram um mercado lucrativo.
Os filmes “ruins” eram os que abordavam questões morais e raciais. O filme “Tarzan, o Filho das Selvas” foi proibido um ano após seu lançamento por retratar uma mulher “civilizada” se afeiçoando a um homem da selva.
As produtoras de Hollywood enfrentaram uma barreira comercial em 1933. Com a ampliação do poder de Hitler, os alemães passaram a exigir um afastamento dos judeus que revendiam os filmes na Alemanha. As empresas aceitaram as exigências para manter os negócios no território. O que chama a atenção de Ben Urwand é que as empresas cinematográficas que participaram deste processo foram criadas justamente por imigrantes judeus: William Fox, fundador da Fox; Louis B. Mayer, da MGM, Adolph Zukor, diretor da Paramount, etc.
Essa “vista grossa” por parte do cinema de Hollywood começou a se abalar em 1938, com o acirramento da perseguição aos judeus, que teve seu ápice na chamada “Noite dos Cristais”, quando lojas e casas de judeus foram destruídas. Na época, Goebbels e o Ministério da Propaganda Nazista liberaram uma lista com mais de 60 personalidades do cinema americano, afirmando que produções com esses artistas seriam proibidos em solo germânico.
Com o início da Segunda Guerra Mundial em setembro de 1939, o mercado cinematográfico estadunidense sofreu um baque na Alemanha, com apenas 20 filmes sendo exibidos em solo alemão. Essa crise financeira e a iminente guerra (até 1941, os Estados Unidos não participavam diretamente do conflito armado) afetaram significativamente a indústria cinematográfica.
Dessa forma, os filmes de Hollywood passaram a ter uma outra abordagem. Se antes existia muita censura e alterações para preservar a imagem germânica, a partir do início da guerra, os filmes passaram a ter uma abordagem antinazista, incentivados pelos governo, que viam no cinema uma forma de mobilizar a opinião pública e conferir sentido ao conflito.
Um exemplo do uso do cinema de Hollywood como “arma de guerra” foi a criação da agência Office of War Information (OWI), órgão criado pelo governo Roosevelt para orientar os produtores de Hollywood sobre as informações da guerra, uma espécie de manual para a indústria cinematográfica. Este documento ditava o que deveria constar nas produções, como: o motivo dos Estados Unidos estarem na guerra, quem eram os inimigos, motivar esforços no trabalho de produção de artigos para manutenção da guerra e a dramatização dos que foram enviados à frente de batalha, mostrados como heróis nacionais.
Em 1939, o lançamento do filme “Confissões de um Espião Nazista”, pela Warner Bros, e o filme “O Grande Ditador”, de Charles Chaplin, marcaram essa cisão entre as produções de Hollywood e os nazistas. Não só o mercado mudou, mas também a direção do conflito, pois agora os produtores de filmes perceberam que o governo estadunidense tinha os nazistas como inimigos a serem combatidos. A mudança de linha criativa da indústria cinematográfica estadunidense, portanto, foi rápida e atendia uma demanda ideológica e mercadológica.
A reação ao lançamento dos dois filmes claramente não agradou os alemães, que censuraram os dois títulos, intitulando-os como uma “conspiração judaica”. O filme sobre um espião foi bem aceito pela crítica estadunidense, sendo eleito o melhor do ano (1939) pela National Board of Review (NBR). Na obra, um agente do FBI (Edward G. Robinson) investiga uma rede de espionagem nazista que se infiltrou nos Estados Unidos para descobrir segredos de segurança nacional. O fato provoca a insegurança e o medo no povo americano.
Em outubro de 1940, foi lançado “O Grande Ditador”, uma sátira bem escancarada de Hitler, protagonizada no filme por Charles Chaplin. A produção do filme foi ameaçada pelos nazistas, mesmo assim, foi um sucesso de bilheteria, sendo a maior do artista mais conhecido do cinema mudo. Ironicamente, uma das cenas mais famosas do filme é o grande discurso final, onde Chaplin, conhecido por não emitir fala alguma em seus filmes, protagoniza uma das falas mais emblemáticas da história do cinema. Em um trecho, ele diz:
“Me desculpem, mas eu não quero ser um imperador. Não é esse o meu ofício. Não quero governar ou conquistar ninguém. Gostaria de ajudar a todos—se possível—judeus, não-judeus, negros e brancos. Todos nós queremos ajudar uns aos outros. O ser humano é assim. Desejamos viver para a felicidade do próximo—não para seu sofrimento. Não queremos odiar e desprezar uns aos outros. Neste mundo há lugar para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover todas as nossas necessidades. [...] Pensamos demais e sentimos muito pouco. Mais do que máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que inteligência, precisamos de gentileza e bondade. Sem essas virtudes, a vida será violenta e tudo será perdido.”
No período de 1942 e 1945, onde os Estados Unidos participaram efetivamente da guerra, foram produzidos mais de 800 filmes que remetiam ao conflito, muitos deles contrários aos nazistas. Entretanto, segundo a pesquisa de Urwand, mencionada anteriormente, esses filmes não expuseram o sofrimento dos judeus nos campos de concentração, algo que só foi explicitamente mostrado nas telas do cinema em 1959, com “O Diário de Anne Frank”.
A percepção de que o cinema foi usado como “arma de guerra” chegou aos periódicos e aos críticos. Em maio de 1973, o periódico “O Cinema e a Guerra Total” afirmou que Hollywood deixou de ser a terra da fantasia, da mentira dourada, do sonho, para se tornar uma poderosa arma, cumprindo sua função de atacar um inimigo comum.
Toda essa jornada cinematográfica trouxe muito dinheiro aos produtores estadunidenses, além de mexer com o imaginário da população. Ao retratar nas películas o esforço da nação em “combater o mal”, a bravura dos soldados e a imagem de um país (Alemanha) que era a encarnação do mal na Terra, fez com que o Cinema de Hollywood se consolidasse como uma forte fonte de Soft Power.
Texto escrito por Josué Kenji
formado em Relações Internacionais, produtor cultural e pós-graduando em gestão Cultural, desenvolvimento e mercado. É co-organizador do "Festival da Criatividade Cria Bauru 2020" desde 2020, criador da "Comunidade Criativa Cria Bauru", articulador criativo da "Rede Bauru: Cidade Criativa Unesco", está membro do "Conselho de Ciência, Tecnologia e Inovação (2022-2024)" na cadeira de Sociedade Civil e atualmente é colunista do Portal Águia.
Revisão: Eliane Gomes
Edição: Felipe Bonsanto
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