Você sabia que 2024 marca os 116 anos de imigração japonesa no Brasil? Desde os primeiros dias da chegada nipônica ao Brasil, em 1908, os japoneses e seus descendentes têm compartilhado sua herança cultural, além de deixar sua marca em diversos setores da economia no país, como agronegócio, indústria, ciência e arte.
Porém, nos últimos anos, principalmente após 2010, a cultura japonesa tem dividido cada vez mais o seu espaço como cultura asiática predominante no coração dos brasileiros.
Outros grupos étnicos da Ásia têm também exportado tradições e costumes para o outro lado do mundo e, a depender do Brasil, rapidamente “caiu em seu gosto” a cultura sul-coreana. A chamada "Onda Coreana" (ou Hallyu, em coreano) já transcende fronteiras geográficas e linguísticas, deixando sua marca permanente não somente no Brasil como no mundo. Esse fenômeno cultural, liderado principalmente pela indústria do entretenimento da Coreia do Sul, está redefinindo o cenário global de música, gastronomia, moda, cinema, televisão e bens de consumo.
Para quem conhece a Coreia do Sul pelos românticos dramas coreanos, o tão conhecido K-pop e as famosas marcas de carro e suas tecnologias, a cultura sul-coreana tem se mostrado cada vez mais imponente e independente do que se rotula como “padrão asiático”. Mas, em contrapartida, muitos desconhecem a longa e complexa história da Península Coreana, que é marcada por luta, resistência e busca por identidade nacional em períodos de unificação e divisão, conflitos internos e externos, influências culturais e mudanças políticas significativas, que permeiam a região até hoje.
Um pouco de história
Considerada uma península por ser uma porção de terra quase que completamente cercada por água, geograficamente a Coreia é um território onde seu norte faz fronteira com a China e a Rússia e o sul com o Mar do Japão.
Sendo uma das civilizações mais antigas do mundo, a Coreia tem uma história rica em desenvolvimento sociocultural, político e econômico.
Tanto que os séculos XIV ao XIX, sob a dinastia Joseon, foram os mais significativos para a construção de um Estado Coreano forte, uma vez que foi esse o período responsável pelos grandes feitos para a sociedade coreana. Desenvolveu-se, portanto, a região em diversos aspectos, desde a adoção de um novo sistema de governo, a criação do hangul (alfabeto coreano), fortalecimento de poderio militar e expansão de território, até o desenvolvimento tecnológico, da ciência e da literatura.
No entanto, no final do século XIX, a Coreia se tornou um objeto de interesse imperialista, com China e o Japão buscando influência sobre a península, principalmente por estarem mais próximos da região da Manchúria (atual Nordeste da China). Após a primeira guerra sino-japonesa (1894-1895) e a Guerra Russo-Japonesa (1904-1905), o Japão emergiu como a potência dominante na Coreia, e em 1910, anexou a Coreia ao seu território, o que na opinião de vários historiadores foi uma das piores catástrofes provocadas pelo homem na história, superando até mesmo o nazifascismo alemão. Os coreanos tiveram de mudar a língua oficial e próprios nomes para japonês, mulheres se tornaram escravas sexuais do exército japonês, além de todas as tentativas de revolta contra seu domínio serem reprimidas pelas tropas japonesas.
Foi somente em 1945, na Segunda Guerra Mundial, com a derrota do Japão pelos Estados Unidos, que se encerrou o período de domínio brutal japonês, além do fim definitivo da guerra. Quando três anos se passaram, houve algumas tentativas pela reunificação das Coreias, mas uma vez que o território ao sul da península ficou sob domínio dos Estados Unidos, esse queria investir parte de seu mercado no pacífico, injetando assim a ideologia capitalista. Enquanto isso, o lado norte, por fortíssima influência da Revolução Russa em 1917 e a Chinesa que estava em curso, aderiram ao marxismo-leninista para a criação do socialismo coreano (Juche).
Sem sucesso na retomada de uma Coreia unificada, em 1948 foi fundada a República da Coreia (Coreia do Sul), sendo sua capital a cidade de Seul; e a República Popular Democrática da Coreia (Coreia do Norte ou Coreia Popular), com a capital sediada em Pyongyang.
No Brasil, a imigração coreana teve início na década de 60 e tem crescido a cada ano. Atualmente há 50 mil pessoas coreanas nativas morando no país, estabelecidas principalmente na cidade de São Paulo, sendo esse grupo étnico um dos mais recentes a aterrisar em solo brasileiro.
E falando na Coreia do Sul, o que ela é hoje em dia?
Um dos países do centro do capitalismo, a Coreia do Sul hoje tem uma população de mais de 51 milhões de pessoas (2022) e é uma das 20 maiores economias do mundo, ocupando o 13º lugar (US$1.71 trilhão), de acordo com projeções em 2023 do Fundo Monetário Internacional (FMI), ficando atrás de países como Brasil (US$ 2,13 trilhões) e Canadá (US$ 2,12 trilhões), e a frente da Austrália (US$1.69 trilhão) e Espanha (US$1.58 trilhão), por exemplo.
O pequenino país, com cerca de 100.210 km² - que proporcionalmente cabe 5 vezes dentro do estado de Minas Gerais - é impulsionado por indústrias do setor de tecnologia da informação, automobilística, eletrônicos, entre outras, o país é terra natal de grandes conglomerados empresariais globais, como Samsung, LG e Hyundai, que contribuem para elevar a economia e o PIB nacional.
Ao combinar tradição, modernidade e a forte influência norte-americana, a Coreia do Sul tem ganhado cada vez mais visibilidade internacional, principalmente através da indústria do entretenimento, que tem servido de inspiração não somente para os países asiáticos vizinhos como tem se popularizado no ocidente. O termo Hallyu inicialmente se referia ao boom da música pop sul-coreana (K-pop), dramas televisivos e filmes sul-coreanos, o que com o passar dos anos de ascensão sul-coreana, denominou-se como a exportação massiva de seus produtos culturais.
A começar pelo K-pop (ou pop coreano), o gênero musical originário da Coreia do Sul, que nasceu no final dos anos 90, se tornou extremamente popular tanto dentro quanto fora do país. É caracterizado por uma mistura de diversos estilos musicais, como pop, hip-hop, R&B, música eletrônica e dance, muitas vezes acompanhado por coreografias elaboradas e produção visualmente impressionante.
Porém, o K-pop não é apenas sobre música: sua indústria é altamente organizada e estruturada, com uma série de etapas e processos que envolvem o treinamento de artistas, produção musical, promoção e gestão de carreira. Grandes agências de entretenimento como a Big Hit Music, SM Entertainment, JYP Entertainment e YG Entertainment realizam audições regulares em busca de talentos aspirantes a cantores, dançarinos e artistas.
Após o longo treinamento, os chamados ‘trainees’ podem ser selecionados para fazer parte de um grupo ou podem estrear como artistas solo. As agências consideram fatores como habilidades individuais, harmonia de grupo e compatibilidade para formar grupos simpáticos e carismáticos com o público.
O BTS (Bangtan Boys) é um dos grupos de k-pop destaques da nova década, que além de serem titãs na cena da música pop coreana, alcançaram sucesso nacional e internacional, realizando turnês mundiais, ganhando diversos prêmios importantes - incluindo nomeações ao Grammy, além de posições de destaque nas paradas musicais globais.
O grupo, que começou em junho de 2013, segundo os dados levantados pelo site Fortune, dentro de 10 anos de carreira (2014-2023) gerou mais de U$29 bilhões de dólares para a economia sul-coreana, sendo que em 2017, estima-se que a cada 13 turistas, um visitava o país por conta dos sete integrantes. Já em 2023, foi anunciado pela empresa gestora de suas carreiras, a Big Hit Music, que pertence a Hybe Corporation, que o grupo daria uma pausa de dois anos na carreira. O motivo? A obrigatoriedade militar na Coreia do Sul.
Não somente os fãs do grupo - não ironicamente chamados de “Armys” - perdem seus ídolos como também o país, uma vez que o serviço militar sul-coreano é obrigatório para todos os homens coreanos saudáveis e aptos entre 18 e 28 anos. Estipulado pela Lei de Serviço Militar, todos os homens devem cumprir por pelo menos 18 meses, embora possa variar dependendo do ramo das Forças Armadas e outros fatores.
Após o anúncio da ida dos membros RM, Jin, Suga, J-hope, Jimin, V e Jung Kook para o exército sul-coreano, as ações da Hybe Corporation imediatamente reduziram em 2,5%. O mês previsto para o retorno do BTS completamente está para junho de 2025.
Agora focando nos chamados “doramas”, ou também conhecidos como dramas televisivos asiáticos, se refere às séries de televisão produzidas em países da Ásia Oriental, principalmente no Japão, Coreia do Sul, China e Taiwan. Essas séries geralmente consistem em múltiplos episódios e abrangem uma variedade de gêneros, como romance, comédia, drama, ação, fantasia, histórico e suspense.
Pode-se dizer que os “doramas” são como as novelas brasileiras, mas com um toque a mais: demonstram uma realidade que muitas pessoas sentem vontade de vivenciar de perto. Não é à toa que sua produção de alta qualidade criou uma base de fãs leal em toda a Ásia e, ainda, têm ganhado popularidade em todo o mundo, especialmente com a ascensão das plataformas de streaming. Netflix, Viki, HBO Max, Prime Video e outras disponibilizam uma ampla variedade de dramas asiáticos para espectadores internacionais, contribuindo para a globalização desse gênero de entretenimento.
Os “doramas” também têm cruzado fronteiras com outros gêneros de entretenimento, como trazer ídolos de K-pop para contracenarem, ou traduzir os Manhwas (mangás coreanos) para personagens reais. Muitos atores e cantores que se destacaram em “doramas” também têm carreiras bem-sucedidas na música e no cinema.
Voltando para o Brasil, o gênero tem conquistado cada vez mais os brasileiros. Tanto que, de acordo com a pesquisa do Ministério da Cultura, Esportes e Turismo, realizada em 18 países pela Fundação Coreana para Intercâmbio Cultural Internacional, entre setembro e novembro de 2020, os brasileiros pertencem à 3º nação que mais consome o gênero cinematográfico, principalmente sul-coreano.
O termo “dorama”, inclusive, foi incluído na língua portuguesa pela Academia Brasileira de Letras (ABL) como "obra audiovisual de ficção em formato de série, produzida no leste e sudeste da Ásia, de gêneros e temas diversos, em geral com elenco local e no idioma do país de origem". Todavia, já foi apontado como preconceituoso pela Associação Brasileira dos Coreanos, em outubro de 2023, por seu sinônimo generalista e orientalista, que associa uma palavra de origem japonesa a produções coreanas.
“A vida imita a arte" - Não seria ao contrário?
Já entendemos que o ‘soft power’ coreano tem se mostrado uma poderosa ferramenta para o país, uma vez que, nas últimas décadas, tem proporcionado uma crescente exponencial no turismo e investimentos estrangeiros na Coreia do Sul.
No entanto, isso não inviabiliza as inúmeras contradições do país do leste asiático. Seu crescimento devastador em tão pouco tempo nem sempre foi acompanhado por uma distribuição equitativa de riqueza e oportunidades, por exemplo, o que resulta em desigualdades sociais significativas dentro da sociedade sul-coreana. Jornadas exaustivas de trabalho totalmente precarizado, padrões de beleza inalcançáveis, especulação imobiliária, desigualdade social cada vez mais visível, tudo o que também impacta diretamente a saúde física e mental dessas pessoas.
O próprio grupo BTS é conhecido por abordar uma variedade de temas em suas composições, como questões sociais, saúde mental, auto aceitação e desigualdade social e de renda, alcançando e influenciando a ampla audiência global que tem.
A faixa estreia “No More Dream", por exemplo, aborda a pressão social sobre os jovens coreanos para seguir um caminho convencional de sucesso, em vez de seguir seus próprios sonhos e paixões;
“Baepsae", conhecida como "Silver Spoon" em inglês, critica a hierarquia social e as desigualdades de classe na Coreia do Sul, destacando as dificuldades enfrentadas pela juventude que lutam para alcançar sucesso em uma sociedade estratificada;
"Spine Breaker", que fala sobre o consumismo exagerado e a pressão para comprar produtos de marca e seguir tendências de moda, mesmo que isso signifique sacrificar sua própria saúde financeira.
Outros bons exemplos também surgem na cinematografia:
Em 2019, tivemos a estreia de "Parasita", filme sul-coreano dirigido por Bong Joon-ho, que conta a história da família Kim, que vive em condições de pobreza em Seul. Eles elaboram um plano para se infiltrar na vida de uma família rica, conseguindo empregos como tutores e funcionários. Vários segredos são revelados durante a trama e a situação toma um rumo sombrio, explorando questões de desigualdade social e disparidade de classe de maneira provocativa. O filme recebeu aclamação da crítica e ganhou vários prêmios internacionais, incluindo quatro Oscars.
Em coreano, a casa onde a família Kim mora se chama "banjiha", que na tradução livre significa "casa-porão”. Apesar da ironia, Parasita é uma excelente releitura da realidade sul-coreana, uma vez que as condições de vida precária representam vividamente a disparidade de classe e desigualdade social explorada ao longo do filme.
Até 1980, alugar casas subterrâneas como banjihas eram ilegais, uma vez que esses espaços eram feitos para serem um local de escape para casos emergenciais, como atentados e guerras. Mas, o que poderia parar um país tão pequeno e superlotado? Com a crise e especulação imobiliária cada vez mais alarmante na capital, o governo foi obrigado a legalizar a residência nessas condições.
E a Coreia do Sul não somente cresce para baixo, como também para cima. Os minúsculos apartamentos, mais conhecidos como "goshiwon", são uma modelo de acomodação de baixo custo, encontrado, principalmente nas áreas urbanas como Seul, geralmente uma opção para estudantes, trabalhadores temporários e pessoas que buscam moradia acessível. Pequenos quartos individuais ou compartilhados, muitas vezes semelhantes a dormitórios, com comodidades básicas como cama, mesa, cadeira e acesso a um banheiro compartilhado.
Outra problemática enfrentada na Coreia do Sul foi a referência vivida nas telas por Gi-hun (Lee Jung-jae) em Round 6 (Squid Game), série sul-coreana de suspense e drama, criada por Hwang Dong-hyuk e lançada em 2021, na Netflix.
A série se tornou um fenômeno global, recebendo aclamação da crítica e ganhando uma enorme base de fãs em todo o mundo com uma trama gira em torno de um grupo de pessoas endividadas que são atraídas para participar de uma série de jogos infantis tradicionais, com a promessa de ganhar um prêmio em dinheiro. No entanto, logo os 456 jogadores descobrem que os jogos, na verdade, são extremamente mortais e cada participante tem que lutar pela própria sobrevivência em meio a desafios cada vez mais brutais. Segundo frase citada na série Round 6
“Aqui pelo menos tenho uma chance. Mas e lá fora? Não tenho nada. Prefiro ficar e morrer tentando, a morrer lá fora como um cachorro. A vida lá fora já é um inferno!"
Ao decorrer de 10 episódios, temas como desigualdade social, ganância, corrupção e moralidade são abordados, explorando o que as pessoas são capazes de fazer quando confrontadas com circunstâncias extremas. Com várias reviravoltas, personagens complexos e cenas intensas, "Round 6" cativou o público com sua narrativa crítica e que, por sua vez, coloca a prova o que as pessoas podem fazer por dinheiro.
E não precisam ir muito longe, uma vez que para 2024, o salário mínimo sul-coreano chegou a ₩ 9.620,00 won sul-coreano por hora (≈R$ 36/h), logo, em uma jornada de trabalho diária de 9 horas por dia, ao fim do mês um trabalhador ganha cerca de ₩2.010.580,00 ao mês (≈R$ 7.520/dia). O limite atual de horas semanais para se trabalhar é de 52 horas, mas o atual governo liberal conservador de Yoon Suk-yeol - atual presidente desde março de 2022, que teve seu histórico político comparado com o de Sérgio Moro - queria aumentar para 69 horas por semana, o que foi amplamente protestado pela juventude e classe trabalhadora sul-coreana.
Em suma, tanto o fenômeno do K-pop quanto a popularidade dos dramas coreanos representam a influência e poderio que a cultura sul-coreana vem ganhando a cada ano — não podendo esquecer da ajuda como moeda de troca pelos Estados Unidos, que segue com interesses geopolíticos na região —, algo que transcende fronteiras e cativa audiência em todo o mundo.
Mas, apesar de sua tese de inovação, qualidade e autenticidade, a Coreia do Sul não é um espelho de país, afinal às contradições do sistema capitalista, ao longo da história, tem permeado a repressão à classe trabalhadora por lucro. Sem contar que carrega consigo as chagas do imperialismo que impossibilita o olhar humano e a dignidade ao povo coreano.
A construção de uma juventude atenta às questões sociais, políticas e econômicas, mesmo que através do k-pop, dramas televisivos e, principalmente, pelo potencial, servem de inspiração para as próximas gerações, que estão compromissadas a construir uma nova identidade para a cultura sul-coreana e, assim, deixar um novo e duradouro legado no cenário internacional.
Texto escrito por Jeane Queiroz
É jornalista e pós-graduanda em Assessoria de Imprensa e Gestão da Comunicação. Orgulhosa "fã de carteirinha" de K-pop, fundou o coletivo Liga Comunarmy, que une fãs do grupo sul-coreano BTS focados em disseminar a perspectiva da luta de classes
através do incentivo e análises das músicas da banda.
Revisão por Eliane Gomes
Edição por Felipe Bonsanto
REFERÊNCIAS
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